#03 - Devaneios no banheiro
Um outro "eu" em conversa com Lacan e Bakhtin, diante do espelho.
Ao me olhar no espelho do banheiro, me deixei levar por devaneios que só não abortei porque me pareceram intrigantes para um começo de ano.
A subjetividade
Quando me vi refletido, a primeira coisa que me veio à mente foi algo que li sobre um processo identificado pelo psicanalista francês, Jacques Lacan, como o "estádio do espelho". Grosso modo, esse processo, que acontece na infância, é responsável pela formação do "eu", de uma identidade a partir da individualidade, separada de "um outro" - num primeiro momento, esse outro se trata da mãe, mas que depois se estende para um todo. Ou seja, a partir do momento em que a criança se olha no espelho e consegue se ver, se reconhecer e, por fim, identificar que é um "ser", com corpo limitado, separado de um todo. Mas todo reflexo no espelho mostra uma imagem invertida; dessa forma, não se trata da realidade, mas de uma distorção dela. Quando eu levanto a minha mão direita na frente do espelho, a imagem levanta a sua mão esquerda; logo, não sou eu na imagem refletida, mas um outro. Essa ideia se amplia e mostra que a identificação do "eu" no espelho também é a identificação de "outro", aquilo que se vê como sendo um eu é também uma imagem criada por um outro, narrada pelo outro e até idealizada pelo outro. A construção de um "eu" ideal passa pela identificação de um outro.
A alteridade
Diante disso, me recordei de um livro que li na época da faculdade, O homem ao Espelho, do filósofo russo Mikhail Bakhtin. Nele, o autor diz que: quando alguém se olha no espelho, na verdade, se olha com os olhos dos outros. Em um primeiro momento isso pode parecer estranho, pois quando me olho no espelho, sou "eu" que "me" vejo refletido, correto? Mas, não é bem assim. O que Bakhtin explica é que: “eu olho a mim mesmo com os olhos de um outro, me avalio do ponto de vista de um outro“. Quando me olho no espelho e faço uma avaliação (como estou arrumado, que roupa estou usando, como está meu cabelo), essa avaliação - ou as decisões a partir dessa avaliação - tem relação direta com construções socioculturais, com questões de valores (bonito/feio, arrumado/desarrumado) impostos pela sociedade, pelo outro (alienado de mim). Assim, quando me olho, me vejo a partir de paradigmas construídos socialmente.
“Não sou eu que olho o mundo ‘de dentro’ com os meus próprios olhos, mas sou eu que olho a mim mesmo com os olhos do mundo, com olhos alheios.[…] Dos meus olhos olham os olhos alheios.”
Mikhail Bakhtin
O desejo
Concluí, então, que, ao nos definirmos, o fazemos a partir do olhar “do outro”, dos valores do outro. É com base nos outros que nos referenciamos: se sou mais alto ou mais baixo (em relação a um outro). Para vivermos e sermos aceitos na sociedade, nos sujeitamos aos paradigmas do outro (de um ser social). Esse é um aspecto importantíssimo para a construção de nossa subjetividade. E, neste ponto, retornei ao Lacan, que considerava que o desejo que temos é sempre um desejo de "outro"; isto é, o desejo é uma busca por reconhecimento e completude (que preenche uma falta) através do outro. Não se trata de desejar um outro (uma outra pessoa), mas de desejar o que o outro deseja. O que demonstra a dimensão social do desejo. O que desejamos parte do que o outro deseja e se completa também no reconhecimento do outro. Isso é fácil de se ver no comportamento da criança (que não inibe suas vontades no meio social): quando uma criança não dá a mínima para um brinquedo, mas, ao ver que outra criança vai brincar com aquele brinquedo, ela passa a querer aquele brinquedo que antes era ignorado por ela. O brinquedo não importava tanto, até o momento em que a outra criança o deseja. O objeto (brinquedo) tem revalorização psíquica a partir do desejo do outro (da outra criança).
Foi então que uma pergunta me soou ao ouvido: De que te serve ter consciência de todo esse assujeitamento, tanto dos paradigmas quanto dos desejos?
Nessa hora, acordei assustado. Suava muito. Fui ao banheiro, lavei meu rosto sem me olhar no espelho. Já na cozinha, preparei um café amargo e demasiadamente forte. Enquanto o bebia, fechei os olhos para tentar descobrir se tudo aquilo pertencia ao real ou ao imaginário; se eu bebia aquele café ou um outro que bebia.
Pensando bem, não deem importância ao que penso ou falo antes de tomar um bom café forte, mas leiam Lacan e Bakhtin, eles sim, sabem o que falam.
“O objeto do desejo humano não é um objeto, mas outro desejo. Portanto, o que o homem deseja é sempre o desejo do Outro”
Jacques Lacan
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Muito obrigado!
Belo texto primo!
Acredito que, sabendo disso, temos certa possibilidade de resistir!...
Reconhecendo as forças que nos moldam, podemos questioná-las, subvertê-las e, talvez, recriar nosso lugar no mundo...
Caracas Ed, essa reflexão dá pano pra manga!! Vontade de filosofar sobre estes aspectos até o café acabar! Obrigada por isso.